sexta-feira, 20 de março de 2015

A barbárie enrustida imposta por selvagens manipuladores

Por Eduardo Kaze

Eduardo Kaze é jornalista, pós-graduado em Ciências Sociais pela Fundação Santo André | Foto: Divulgação



Quem não chora não mama, diz o ditado, atestando que a vontade necessita ser declarada diante da figura que deve (e tem o direito de) satisfazer a necessidade explicitada pelo pedinte que, por regra, o é em virtude da relativa inferioridade financeira, física, intelectual ou social, determinada pressupostamente pelo provedor, em acordo tácito e de direito consuetudinário com o pedinte. Desta relação, nasce também o lucro.

Apesar de popular, a frase inicial deste texto demonstra o fundamento que a sociedade contemporânea tomou como verdade perene: um sistema econômico falho, cujo escopo é realizar o oposto ao que o termo lexicamente se propõe (ou seja, alvitra incentivar o consumo, não a economia). Com isso, se fomenta o enriquecimento de classes específicas, em detrimento a outras, deixando, ainda, de lado o comprometimento com os recursos naturais do planeta, limitados e irrenováveis em curto prazo.

Neste sistema, o indivíduo não estabelecido no rol dos detentores dos meios de produção se apresenta na figura de força material, ou de trabalho, gerando a riqueza da qual somente pode usufruir provando possuir os méritos predefinidos pelos supostos gestores da sociedade – os já citados detentores. Tarefa esta tecnicamente impossível em larga escala, gerando multidões incontáveis de miseráveis de boca aberta, a esperar que lhes seja atirado algum provimento.

Ruim tal situação – de imposição invisível ao empenho social pela suposta prosperidade de um sistema que cresce unilateralmente – na qual a subsistência é recebida como graça, como brinde, como algo que se obtém gratuitamente, um presente dado por aqueles que, ao contrário do pedinte, ascenderam socialmente, pelo próprio esforço, luta e trabalho, com as bênçãos da meritocracia (isso é um engodo!).

É comum ouvir de alguém que o serviço de saúde oferecido pelo governo é gratuito. Contudo, não se coloca neste cálculo os impostos pagos em toda e qualquer ação consumidora realizada e a parcela ínfima que o trabalhador embolsa do fruto do próprio trabalho. Na mente esfolada da plebe, ferida propositalmente pela nobreza, o que é dado é menos percebido do que o recebido. Os impostos incorporados nos alimentos e produtos em geral e a exploração do trabalho ocorrem de maneira imperceptível aos olhos do oprimido, enquanto o cuidado médico, por exemplo, o é recebido como um favor – que apesar de parco em eficiência, é aceito complacentemente (em cavalo dado não se olha os dentes).

Quando, no futuro, perscrutarem o que chamamos presente, indagarão como pudemos reproduzir a situação esdrúxula, ilusória e parcial do capital, na mesma medida que hoje nos perguntamos como um dia vivemos sem computadores, veículos motorizados, roupas de grife, aparelhos eletrônicos e sistemas tecnológicos de comunicação.

A questão é: quando a pergunta futura for proferida, a indagação presente quanto ao passado terá sido também extinta? Até que ponto nossas necessidades contemporâneas serão mantidas, e quanto serão alteradas, quando for superada a sociedade atual fundamentada na obtenção de privilégios unilaterais por parte dos detentores dos meios de produção?

Não há resposta imediata, mas é possível ter certeza de que a durabilidade dos bens que hoje, em virtude do imperativo de rotatividade da (des)economia instituída, se autodestroem (literalmente) após um certo período, não mais ocorrerá. Os serviços diretamente ligados à subsistência não mais terão um preço e a qualidade de vida será um direito, não um privilégio. Cada um dará à sociedade o que pode, recebendo de volta o que necessita. Olharemos para a Terra, finalmente, como uma parceira e usufruiremos somente o necessário, ao contrário da pilhagem ecogenocida praticada hoje. Seremos o melhor do que se designa “humano”, e relevaremos essa paródia atual de nós mesmos a um remoto passado de barbárie enrustida imposta por selvagens manipuladores.

Isso virá somente com a luta, não se enganem!

Obs.: Matéria publicada originalmente na edição 849 do jornal Ponto Final.

Nenhum comentário:

Postar um comentário